sábado, 11 de janeiro de 2014

Sem água, sem folha, sem Orixá

Na cultura Yorùbá, no que tange a Ecologia e Cultura Religiosa, o homem está extremamente ligado à natureza, pois caso venha degradar qualquer componente do ecossistema natural irá assim causar um desiquilíbrio, conforme descrito no proverbio yorubano:“OMI KOSI, ÉWÈ KOSI, ÒRÌSÀ KOSI” (Sem água, sem folha, sem Orixá).

Hoje nossa vida depende do uso cada vez maior dos recursos naturais, estamos nos desenvolvendo tecnologicamente cada vez mais rápido, mas este desenvolvimento desenfreado nos causa impactos ambientais como a diminuição e esgotamento de recursos, e posteriormente impactos ambientais ao nosso ecossistema natural. Desta forma o “capitalismo” e “consumismo” passam a ser um dos grandes vilões contra o Equilíbrio Natural, ou seja, mais uma vez sofremos consequências por nossas próprias ações.
A falta d’água, a falta de alimento, falta de terra fértil, desastres naturais, doenças e pestes são dentre algumas formas em que Olorum e demais Òrìàs tentam reajustar e realinhar o equilíbrio natural. A degradação do planeta de forma progressiva não acarretará o fim do ayé (terra) e sim o fim da raça humana caso seja o desejo de nossos Òrìàs, ou seja, a elevação da temperatura da terra, a destruição de ecossistemas, o desaparecimento diário de milhares de espécies, a redução vertiginosa dos estoques de água potável são sintomas dessa crise ambiental global, um verdadeiro desafio para toda a humanidade.
Nossos ancestrais mais distantes foram os primeiros ecologistas da terra, com o passar dos anos e inserção da ideologia capitalista dentro dos cultos afro-religiosos, principalmente no ocidente, fez com que os valores de respeito e veneração à natureza fossem esquecidos.
Portanto hoje adotar práticas e atitudes sustentáveis é garantir que as gerações futuras possam também usufruir dos recursos naturais garantindo assim existência humana, como também terem a oportunidade de reverenciar nossos Òrìàs.
A sustentabilidade abrange vários níveis, desde a vizinhança local até o planeta inteiro. Para um empreendimento humano e até mesmo um terreiro, centro e Ilé Àṣẹ (Casa de Axé) ser sustentável, têm de ter em vista 04 requisitos básicos, como: atitudes ecologicamente corretas, economicamente viável, justiça social e promover a tolerância cultural.
Desta forma pense e reflita sobre como hoje você cultua seu Òrìà, entidades espirituais e ancestrais, pois cultua-los de maneira ambientalmente responsável é garantir a existência do àṣẹ, o equilíbrio do ecossistema, continuidade da raça humana e combater a intolerância religiosa.


quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Por que no meio da dor os negros, dançam, cantam e riem?


Milhares de pessoa em toda a Africa do Sul misturam choro com dança, festa com lamentos pela morte de Nelson Mandela. É a forma como realizam culturalmente o rito de passagem da vida deste lado para a vida do outro lado, onde estão os anciãos, os sábios e os guardiães do povo, de seus ritos e das normas éticas. Lá está agora Mandela de forma invisível mas plenamente presente acompanhando o povo que ele tant ajudou  a se libertar.
Momentos como estes nos fazem recordar de nossa mais alta ancestralidade humana. Todos temos nossas raízes na Africa, embora a grande maioria o desconheça ou não lhe dê importância. Mas é decisivo que nos reapropriemos de nossas origens, pois elas, de um modo ou de outro, na forma de informação, estão inscritas no nosso código genético e espiritual.
Refiro-me aqui tópicos de um texto que há tempos escrevi sob o título:”somos todos africanos” atualizado face à situação atual mudada. De saída importa denunciar a tragédia africana: é o continente mais esquecido e vandalizado das políticas mundiais. Somente suas terras contam. São compradas pelos grandes conglomerados mundiais e pela China para organizar imensas plantações de grãos que devem garantir a alimentação, não da Africa, mas de seus países ou negociadas no mercado especulativo. As famosas “land grabbing” possuem, juntas, a extensão de uma França inteira. Hoje a Africa é uma espécie de espelho retrovisor de como nós humanos pudemos no passado e podemos hoje ainda  ser desumanos e terríveis. A atual neocolonização é mais perversa que a dos séculos passados.
Sem olvidar esta tragédia, concentremo-nos na herança africana que se esconde em nós. Hoje é consenso entre os paleontólogos e antropólogos que a aventura da hominização se iniciou na África, cerca de sete milhões de anos atrás. Ela se acelerou passando pelo homo habilis, erectus, neanderthalense até chegar ao homo sapiens cerca de noventa mil anos atrás. Depois de ficar 4,4 milhões de anos em solo africano este se propagou para a Asia, há sessenta mil anos; para a Europa, há quarenta mil anos; e para as Américas há trinta mil anos. Quer dizer, grande parte da vida humana foi vivida na África, hoje esquecida e desprezada.
A África além de ser o lugar geográfico de nossas origens, comparece como  o arquétipo primal: o conjunto das marcas, impressas na alma de todo ser humano. Foi na África que este elaborou suas primeiras sensações, onde se articularam as crescentes conexões neurais (cerebralização), brilharam os primeiros pensamentos, irrompeu a criatividade e emergiu a complexidade social que permitiu o surgimento da linguagem e da cultura. O espírito da África, está presente em todos nós.
Identifico três eixos principais do espírito da África que  podem nos inspirar na superação da crise sistêmica que nos assola.
O primeiro é o amor à Mãe Terra, a Mama Africa. Espalhando-se pelos vastos espaços africanos, nossos ancestrais entraram em profunda comunhão com a Terra, sentindo a interconexão que todas as coisas guardam entre si, as águas, as montanhas, os animais, as florestas e as energias cósmicas. Sentiam-se parte desse todo. Precisamos nos reapropriar deste espírito da Terra para salvar Gaia, nossa Mãe e única Casa Comum.
O segundo eixo é a matriz relacional (relational matrix no dizer dos antropólogos). Os africanos usam a palavra ubuntu que singifica:”eu sou o que sou porque pertenço à comunidade” ou “eu sou o que sou através de você e você é você através de mim”. Todos precisamos uns dos outros; somos interdependentes. O que a física quântica e a nova cosmologia dizem acerca de interconexão de todos com todos é uma evidência para o espírito africano.
À essa comunidade pertencem os mortos como Mandela. Eles não vão ao céu, pois o céu não é um lugar geográfico, mas um modo de ser deste nosso mundo.  Os mortos continuam no meio do povo como conselheiros e guardiães das tradições sagradas.
O terceiro eixo são os rituais e celebrações. Ficamos admirados que se dedique um dia inteiro de orações por Mandela com missas e ritos. Eles sentem Deus na pele, nós ocidentais na cabeça. Por isso dançam e mexem todo o corpo enquanto nós ficamos frios e duros como um cabo de vassoura.
Experiências importantes da vida pessoal, social e sazonal são celebrados com ritos, danças, músicas e apresentações de máscaras. Estas representam as energias que podem ser benéficas ou maléficas. É nos rituais que ambas se equilibram e se festeja a primazia do sentido sobre o absurdo.
Notoriamente é pelas festas e ritos que a sociedade refaz suas relações e reforça a coesão social. Ademais nem tudo é trabalho e luta. Há a celebração da vida, o resgate das memórias coletivas e a recordação das vitórias sobre ameaças vividas.
Apraz-me trazer o testemunho pessoal de um dos nosos mais brilhantes jornalistas, Washington Novaes:”Há alguns anos, na África do Sul, impressionei-me ao ver que bastava se reunirem três ou quatro negros para começarem a cantar ea  dançar, com um largo sorriso.Um dia, perguntei a um jovem motorista de taxi:”Seu povo sofreu e ainda sofre muito. Mas basta se juntarem umas poucas pessoas e vocês estão dançando, cantando, rindo. De onde vem tanta força?” E ele: “Com o sofrimento, nós aprendemos que a nossa alegria não pode depender de nada fora de nós. Ela tem de ser só nossa, estar dentro de nós.”
Nossa população afrodescendente nos dá a mesma amostra de alegria que nenhum capitalismo e consumismo pode ofecer.

* Texto escrito pelo teólogo Leonardo Boff, retirado do site: http://leonardoboff.wordpress.com/2013/12/12/por-que-no-meio-da-dor-os-negros-dancam-cantam-e-riem/